O ciclismo profissional enfrenta um dilema crescente que está gerando debates acalorados no pelotão: a influência das motos de TV e apoio nos resultados das corridas. Quando Tadej Pogačar aproveitou o vácuo de uma moto de televisão para disparar em uma descida na Tre Valli Varesine, ele não fez nada ilegal – mas reacendeu uma discussão fundamental sobre a equidade no esporte.
O Problema Que Todo Mundo Vê, Mas Ninguém Resolve
A questão é simples e complexa ao mesmo tempo. Motos de televisão precisam estar próximas aos ciclistas para capturar as imagens dramáticas que fazem do ciclismo um esporte tão emocionante de assistir. Porém, essa proximidade cria uma vantagem aerodinâmica significativa que pode determinar quem vence ou perde uma corrida.
“Precisamos fazer algo sobre isso, tanto pela justiça quanto pela segurança”, afirma Adam Hansen, presidente da CPA (Associação de Ciclistas Profissionais). E ele não está sozinho nessa preocupação – é um tema constantemente discutido no pelotão, embora muitos prefiram não se manifestar publicamente.
A Ciência Por Trás do Vácuo: Números Que Impressionam
O pesquisador belga Bert Blocken e sua equipe da Universidade de Eindhoven quantificaram cientificamente o impacto do vácuo aerodinâmico das motos através de estudos em túnel de vento e simulações computacionais. Os resultados são reveladores:
- A 2,64 metros de distância: redução de 48% no arrasto aerodinâmico
- A 10 metros: redução de 23%
- A 30 metros: redução de 12%
- A 50 metros: ainda há 7% de redução
Traduzindo em ganho de tempo, estamos falando de até 12,7 segundos por quilômetro quando muito próximo, ou 1,6 segundos mesmo a 50 metros de distância. Em um esporte onde vitórias são decididas por centésimos, esses números são extraordinários.
Casos Polêmicos Que Marcaram a Temporada
O americano Quinn Simmons foi uma das vozes mais críticas em 2025. Após perder uma oportunidade na etapa 15 do Tour de France para Carcassonne, quando Tim Wellens escapou com ajuda de uma moto, Simmons não mediu palavras: “Era sobre o mais forte e o melhor momento com a moto”.
Wellens, por sua vez, defendeu-se dizendo que “Quinn também poderia ter atacado primeiro e aproveitado a moto”. É aí que mora o problema: todos sabem que acontece, mas é tratado como parte do jogo.
A Arte Sombria de Usar o Vácuo
No meio do pelotão, ciclistas confirmam que sentem imediatamente quando uma moto de TV está próxima à frente do grupo – a velocidade aumenta drasticamente. “É a natureza dos ciclistas fazer tudo para economizar energia”, explica Hansen. “Eficiência energética vence corridas”.
Mas há situações ainda mais controversas. Fontes do pelotão revelam que alguns ciclistas chegaram a presentear pilotos de moto na esperança de receber ajuda em momentos cruciais. Outros suspeitam de favorecimento deliberado em certas corridas e países.
O Dilema da Transmissão Televisiva
Renaat Schotte, respeitado jornalista belga que trabalha para a Sporza e acompanha corridas de moto há anos, oferece uma perspectiva diferente. Ele argumenta que o efeito real nas estradas abertas é menor do que o calculado em laboratório, devido a ventos laterais e condições variáveis.
“As pessoas em casa querem ver as expressões dos ciclistas, o sofrimento, a emoção”, diz Schotte. “Os pilotos de moto estão sob pressão constante para conseguir a melhor imagem”.
Soluções Propostas: Entre a Tecnologia e a Regulamentação
A UCI implementou um sistema de cartões amarelos em 2025 para punir comportamentos perigosos no comboio da corrida. Dos 270 cartões distribuídos, 39 foram para motos de TV e fotógrafos, alguns por facilitar vácuo aerodinâmico.
Mas especialistas propõem soluções mais robustas:
- Distância mínima obrigatória de 25 metros entre motos e ciclistas
- Sistema VAR para monitorar e punir infrações em tempo real
- Sensores tipo Race Ranger (usados em triatlo) para medir distâncias automaticamente
- Lentes de alta definição com estabilização avançada para filmar de mais longe
- Drones como alternativa futura às motos (ainda em desenvolvimento)
O Impacto na Segurança e Velocidade das Corridas
Hansen levanta um ponto crucial: “Se a UCI realmente quer reduzir a velocidade média das corridas, temos que fazer algo sobre as motos influenciando o resultado”. O projeto SafeR, criado para melhorar a segurança no ciclismo, identificou as motos de TV como um dos principais fatores para o aumento constante das velocidades nas corridas.
Um diretor esportivo, que preferiu não se identificar, revela sua frustração: “Meus ciclistas sempre reclamam pelo rádio e eu vou ao comissário protestar. Digo a eles para irem à frente e mandarem as motos se afastarem, mas eles não gostam de serem vistos fazendo isso”.
O Passado e o Futuro: Da Milano-Sanremo às Novas Tecnologias
Até o final dos anos 90, na subida do Poggio durante a Milano-Sanremo, um verdadeiro pelotão de motos aguardava para capturar o momento decisivo. Equipes e ciclistas sabiam que o primeiro a atacar seria literalmente puxado pelo vácuo massivo.
Hoje, o sistema de “pool” de imagens limita o número de motos em momentos cruciais, mas o problema persiste, especialmente em fugas longas e durante transmissões que agora cobrem corridas do início ao fim.
A Realidade Incômoda Que o Ciclismo Precisa Enfrentar
A verdade é que o ciclismo profissional tem muitos problemas complexos, mas o vácuo das motos parece ser um dos mais evitáveis e solucionáveis. Não se trata de acabar com as transmissões televisivas ou prejudicar o espetáculo – trata-se de encontrar um equilíbrio justo.
Como disse um ciclista que preferiu o anonimato: “É parte do jogo, mas não deveria ser. A aerodinâmica é fundamental no ciclismo moderno. Se você consegue o vácuo da moto quando ataca, pode ir muito mais rápido. Mesmo alguns segundos fazem uma diferença decisiva”.
O Momento de Agir é Agora
O ciclismo está em uma encruzilhada importante. Pode continuar fingindo que o problema não existe ou pode tomar medidas concretas para garantir que as corridas sejam decididas pelas pernas dos atletas, não pela proximidade de uma moto de televisão.
A tecnologia existe, as soluções estão disponíveis. O que falta é vontade política e talvez a coragem de aceitar que algumas imagens espetaculares podem ter que ser sacrificadas em nome da integridade esportiva.
Como bem resumiu Hansen: “Não é culpa dos ciclistas. É a moto que não deveria estar na frente deles”. É hora do ciclismo profissional decidir o que é mais importante: imagens perfeitas ou corridas justas.

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