O debate sobre segurança no ciclismo profissional ganhou um novo capítulo polêmico. Em recente participação no programa De Laatste Etappe, na Holanda, dois ex-ciclistas profissionais levantaram propostas que prometem dividir opiniões: a criação de uma licença de pilotagem para competir no pelotão e o uso obrigatório de equipamentos de proteção nas corridas.
A Proposta Polêmica: Teste de Habilidade Antes de Entrar no Pelotão
Stef Clement, que pendurou as sapatilhas em 2018 após 13 temporadas como profissional, foi direto ao ponto durante o programa realizado em Utrecht. Segundo ele, o ciclismo é um dos poucos esportes onde você pode chegar ao mais alto nível sem demonstrar competência técnica específica para aquilo.

“Não existe um teste de proficiência que você precise passar antes de se tornar um ciclista profissional”, explicou Clement. “Você demonstra que tem habilidades para ter um desempenho incrivelmente bom em um ergômetro, e então te soltam no pelotão. É como permitir que alguém dirija um trator na Fórmula 1 com uma carteira de motorista comum, e simplesmente ver no que vai dar.”
O ex-atleta, que defendeu equipes como LottoNL-Jumbo, IAM Cycling e Bouygues Telecom, reconheceu até suas próprias limitações técnicas com bom humor. Quando provocado sobre ciclistas que chegaram ao profissionalismo através de plataformas virtuais como o Zwift Academy, Clement foi categórico: “Bem, acho que poderíamos ter evitado muitas quedas. Teria sido melhor se essa pessoa tivesse feito um pequeno curso intensivo de pilotagem antes.”
Tom Dumoulin Defende Equipamentos de Proteção no Pelotão
Enquanto Clement focava na habilidade técnica, Tom Dumoulin, campeão do Giro d’Italia 2017 e atualmente dedicado à corrida de rua, trouxe à tona outra questão crítica: a falta de proteção dos ciclistas em velocidades extremamente altas.

“O ciclismo é o único esporte onde você desce a 100 quilômetros por hora sem nenhuma proteção”, argumentou o holandês. Ele comparou a situação com o motociclismo, onde o uso de trajes completos com proteções é obrigatório.
“Você acha que um motociclista gosta de usar um traje completo com joelheiras e tudo mais? Não, claro que não. Mas é obrigatório”, observou Dumoulin. “Um traje completo de moto pode ser ir longe demais no ciclismo, mas certamente deveríamos ser obrigados a usar algum tipo de proteção se todos a tiverem.”
O ex-campeão mundial de contrarrelógio acredita que a normalização é fundamental. “Em algum momento, você se acostuma. Hoje em dia, é normal usar capacete, embora costumávamos achar isso ridículo. Vamos tornar normal o uso de roupas de proteção.”
Não É a Primeira Vez: Dumoulin Já Havia Proposto Mudanças

Esta não é a primeira vez que Dumoulin manifesta preocupação com a segurança dos atletas. Em abril deste ano, ele já havia sugerido duas medidas simples de segurança que fariam grande diferença:
- Luzes de freio traseiras nas bicicletas: semelhantes às dos automóveis, acenderiam quando o ciclista freia, alertando quem vem atrás
- Roupas com proteção acolchoada: principalmente nos ombros e quadris, áreas mais vulneráveis em quedas
“Por que diabos ainda não temos semáforos em nossas bicicletas?”, questionou o ciclista de 35 anos. “Apenas uma pequena luz vermelha que acende na parte traseira quando você aciona os freios. Obrigatório no trânsito, mas não nas corridas. Com certeza faria diferença.”
Sobre as roupas de proteção, ele reconheceu: “Claro que é chato pedalar com acolchoamento nos ombros e quadris, mas certamente a indústria deveria ser capaz de fazer algo agradável e confortável o suficiente?”
A Realidade Das Quedas: Um Momento de Lucidez
Refletindo sobre os perigos da profissão, Dumoulin compartilhou uma experiência reveladora. Após se aposentar do ciclismo profissional, ele participou de uma corrida amadora de gravel nos Estados Unidos e teve uma epifania.
“Percebi isso na semana passada quando corri uma prova amadora de gravel nos Estados Unidos. Na primeira descida, de repente vi números de corrida por todos os lados. De repente fiquei com medo”, revelou.
“Percebi que como ciclista profissional eu havia me ensinado a suprimir esse medo. Como corredor, você pode entrar em um modo de bloquear tudo, mas em uma corrida amadora eu não queria isso de jeito nenhum. Foi assim que realmente me atingiu agora.”
UCI Já Implementou Novas Regras de Segurança Para 2025

Vale destacar que a UCI (União Ciclística Internacional) não ficou parada diante do aumento das quedas e dos riscos no pelotão. Para a temporada 2025, o órgão máximo do ciclismo mundial implementou uma série de novas regulamentações focadas em segurança:
Sistema de Cartões Amarelos
Inspirado no futebol, o sistema de cartões amarelos já está em vigor nas principais competições. Os ciclistas podem receber advertências por comportamentos que comprometam a segurança, como:
- Pilotagem perigosa
- Comemoração soltando o guidão durante a corrida
- Descumprimento de zonas de alimentação
- Posições aerodinâmicas irregulares
As penalidades são progressivas: dois cartões amarelos na mesma prova resultam em sete dias de suspensão, três cartões em 30 dias rendem 14 dias fora, e seis cartões em um ano significam 30 dias de suspensão.
Expansão da Zona de Proteção em Sprints
A famosa regra dos 3km foi ampliada. Agora, o protocolo de zona de sprint estende-se para 5 quilômetros antes da chegada. Isso significa que ciclistas que sofrerem quedas nessa zona receberão o mesmo tempo do grupo em que estavam, protegendo classificações gerais.
Regulamentação Mais Rígida de Equipamentos
A partir de 2026 e 2027, a UCI implementará:
- Largura mínima de guidões: 40cm (gerando polêmica no pelotão feminino)
- Limite de preço para equipamentos em provas de pista (Jogos Olímpicos 2028)
- Especificações técnicas mais rígidas para capacetes e componentes
- Verificação de pneus tubeless e rodas para garantir segurança
Estatísticas Alarmantes Motivam Mudanças
Segundo dados oficiais da UCI, foram registrados 497 incidentes em 2024 apenas nos eventos WorldTour, Women’s WorldTour e ProSeries. Desses, 35% foram classificados como erros não provocados dos ciclistas, 13% ocorreram em situações de tensão próximo a pontos estratégicos (subidas, paralelepípedos, sprints), e 11% em condições perigosas da estrada.
O Programa SafeR: Colaboração Pela Segurança
A UCI criou o programa SafeR em 2023, reunindo todas as partes interessadas no ciclismo:
- AIOCC (Associação Internacional de Organizadores de Corridas Ciclísticas)
- AIGCP (Associação Internacional de Grupos Ciclísticos Profissionais)
- CPA e CPA Women (representantes dos ciclistas profissionais)
- UCI
David Lappartient, presidente da UCI, destacou: “A segurança dos ciclistas é uma prioridade, tanto para a UCI quanto para todos os envolvidos no ciclismo. O SafeR agora tem uma estrutura sólida e está progredindo com rigor e profissionalismo em direção à implementação de iniciativas que tornarão o ciclismo de estrada mais seguro.”
A Reação do Pelotão: Entre Críticas e Apoio
As propostas de Clement e Dumoulin, assim como as novas regras da UCI, dividem opiniões. Alguns ciclistas apoiam mudanças mais radicais, enquanto outros argumentam que o excesso de regulamentação pode descaracterizar o esporte.
Tom Pidcock, da equipe Ineos Grenadiers, chegou a classificar algumas das mudanças da UCI como “cortina de fumaça”, argumentando que certas restrições (como limitações de marchas) poderiam tornar o esporte mais perigoso ao invés de mais seguro.

Já no pelotão feminino, houve forte reação contra a exigência de guidões mais largos, com muitas atletas apontando que a medida ignora diferenças anatômicas entre homens e mulheres.
O Dilema: Performance Versus Segurança
O debate central gira em torno de um dilema clássico do esporte de alto rendimento: até que ponto podemos sacrificar a performance pura em nome da segurança?
Por um lado, o ciclismo profissional sempre foi caracterizado por sua essência crua, pela coragem dos atletas em descer montanhas a velocidades extremas, pela habilidade em navegar pelo caos do pelotão em sprints finais. Essa é parte da magia que atrai milhões de fãs.
Por outro lado, os números não mentem: as quedas estão se tornando mais frequentes e graves. Carreiras são encurtadas, vidas são colocadas em risco, e famílias sofrem as consequências.
Exemplos de Outros Esportes
A sugestão de Dumoulin sobre normalização de equipamentos de proteção não é inédita em esportes de risco. Vejamos alguns paralelos:
- Motociclismo: Trajes completos de couro, proteções de coluna, airbags integrados
- Esqui alpino: Capacetes obrigatórios, proteções dorsais, equipamentos acolchoados
- Fórmula 1: Halo (proteção da cabeça), HANS (proteção cervical), cockpits reforçados
- Rugby: Capacetes e proteções bucais tornaram-se padrão
Em todos esses casos, houve resistência inicial dos atletas e dos puristas. Hoje, ninguém questiona essas proteções.
A Indústria Pode Responder ao Desafio?
Uma questão prática levantada por Dumoulin é se a indústria de equipamentos ciclísticos consegue desenvolver proteções que sejam simultaneamente:
- Eficazes: capazes de prevenir ou minimizar lesões
- Confortáveis: não comprometer a mobilidade ou causar desconforto
- Aerodinâmicas: não penalizar significativamente a performance
- Leves: não adicionar peso excessivo
- Respiráveis: adequadas para diferentes condições climáticas
Fabricantes como POC, D3O e outros já desenvolvem materiais de proteção avançados para diferentes esportes. A tecnologia existe – falta vontade política e aceitação cultural para implementá-la.
E a Licença de Pilotagem? Seria Viável?
A proposta de Stef Clement sobre um teste de competência técnica levanta questões interessantes:
Argumentos a Favor:
- Garantiria nível mínimo de habilidade técnica
- Reduziria quedas causadas por falta de experiência
- Protegeria outros ciclistas de pilotos inexperientes
- Seria similar a licenças em automobilismo
Argumentos Contra:
- Como medir objetivamente “habilidade de pilotagem”?
- Pilotos se desenvolvem competindo, não em testes
- Criaria barreira de entrada ao profissionalismo
- Difícil de padronizar globalmente
Talvez a solução não seja um teste formal, mas sim um sistema de desenvolvimento progressivo – similar ao que existe no automobilismo com categorias de base – onde jovens talentos acumulam experiência em pelotões menores antes de chegarem ao WorldTour.
O Papel das Equipes e Organizadores
Além das regras da UCI e dos equipamentos individuais, há responsabilidade compartilhada:
- Equipes: devem treinar seus atletas em técnicas de pilotagem e segurança
- Organizadores: precisam projetar percursos mais seguros, remover móveis urbanos perigosos, sinalizar adequadamente
- Diretores esportivos: devem equilibrar pressão por resultados com bem-estar dos atletas
O Futuro da Segurança no Ciclismo
As discussões levantadas por Clement e Dumoulin não vão desaparecer. Com o aumento da velocidade média das corridas (graças a equipamentos cada vez mais aerodinâmicos e potência dos ciclistas), o pelotão continua ficando mais perigoso.
A UCI já deu passos importantes com o programa SafeR e as novas regulamentações para 2025. Mas será suficiente? Ou precisamos de mudanças mais radicais?
Uma coisa é certa: o debate está apenas começando. E quanto mais vozes respeitadas como as de Clement e Dumoulin se juntarem à conversa, maior a pressão por mudanças concretas.
O ciclismo profissional está em uma encruzilhada. De um lado, a tradição e a essência do esporte. Do outro, a segurança e o bem-estar dos atletas que o praticam. Encontrar o equilíbrio não será fácil, mas é absolutamente necessário.
FAQ – Perguntas Frequentes
1. O que é uma licença de pilotagem para ciclistas?
É uma proposta de exigir que ciclistas profissionais passem por um teste de competência técnica antes de poderem competir em provas de alto nível, similar ao que acontece no automobilismo. A ideia é garantir que todos tenham habilidades mínimas de pilotagem no pelotão.
2. Quais equipamentos de proteção são obrigatórios atualmente no ciclismo profissional?
Atualmente, apenas o capacete é obrigatório em todas as competições profissionais de ciclismo de estrada desde 2003. Não há obrigatoriedade de outras proteções como joelheiras, cotoveleiras ou proteções corporais acolchoadas.
3. O que é o sistema de cartões amarelos da UCI?
Implementado em 2025, é um sistema de advertências inspirado no futebol. Ciclistas, diretores esportivos e outros envolvidos nas corridas podem receber cartões amarelos por comportamentos perigosos. Acúmulo de cartões resulta em suspensões progressivas.
4. Quantos incidentes foram registrados no ciclismo profissional em 2024?
Segundo a UCI, foram registrados 497 incidentes em 2024 apenas nas competições WorldTour, Women’s WorldTour e ProSeries. Desses, 35% foram erros não provocados dos ciclistas.
5. O que é o programa SafeR da UCI?
É um programa lançado pela UCI em 2023 que reúne organizadores, equipes, ciclistas e a própria UCI para desenvolver e implementar medidas de segurança no ciclismo profissional. O programa é responsável pelas novas regras e regulamentações.
6. Qual é a regra dos 3km e como ela mudou?
É uma regra de proteção que garante que ciclistas que caiam nos últimos quilômetros de uma etapa recebam o mesmo tempo do grupo em que estavam. Em 2025, essa zona foi expandida de 3km para 5km, mas apenas em etapas marcadas como sprint.
7. Por que a largura mínima de guidões gerou polêmica?
A UCI estabeleceu largura mínima de 40cm para guidões a partir de 2026. Isso gerou críticas especialmente no pelotão feminino, pois muitas ciclistas têm ombros mais estreitos e usam guidões menores por questões anatômicas e de conforto.
8. Quais outros esportes usam equipamentos de proteção obrigatórios?
Vários esportes exigem proteções: motociclismo (trajes completos), Fórmula 1 (Halo, HANS), esqui alpino (capacetes, proteções dorsais), rugby (capacetes), entre outros. Todos enfrentaram resistência inicial antes de tornarem as proteções padrão.
9. É possível desenvolver roupas de proteção que não atrapalhem a performance?
Sim. A tecnologia moderna permite criar proteções com materiais como D3O (que endurecem sob impacto mas são flexíveis em uso normal), fibras de carbono leves e tecidos técnicos respiráveis. O desafio é equilibrar proteção, conforto, aerodinâmica e custo.
10. Quando as novas regras de segurança da UCI entram em vigor?
As principais mudanças já entraram em vigor em janeiro de 2025, incluindo o sistema de cartões amarelos e a expansão da zona de sprint. Outras regulamentações sobre equipamentos começam a valer em 2026 e 2027, incluindo limites de preço para equipamentos de pista antes das Olimpíadas de 2028.

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