A fusão Lotto-Intermarché prometia ser uma solução para duas equipes belgas em dificuldades financeiras, mas os bastidores revelam uma realidade muito mais sombria. O veterano ciclista Thomas De Gendt, que conhece profundamente o funcionamento da Lotto, não poupou palavras ao descrever a situação atual como “um pouco como estar no inferno” para os corredores afetados.
A Reação dos Corredores: Medo e Incerteza
Quando surgem notícias sobre fusões de equipes no pelotão profissional, a primeira reação dos ciclistas envolvidos é praticamente universal, segundo De Gendt: “Droga, talvez eu fique sem emprego”. E a matemática é cruel – onde antes existiam duas equipes com vagas para dezenas de atletas, agora haverá apenas uma estrutura com capacidade limitada.
A situação torna-se ainda mais dramática para aqueles sem contrato garantido. Com a fusão prevista para 2026, muitos corredores vivem em um limbo profissional desde julho de 2025, quando os primeiros rumores da união começaram a circular durante o Tour de France.
O Efeito Dominó no Mercado de Transferências
O impacto da fusão Lotto-Intermarché vai muito além dos corredores das duas equipes envolvidas. De Gendt explica que o mercado de transferências está completamente travado, com negociações importantes sendo adiadas ou simplesmente não acontecendo. A razão é simples: ninguém sabe ao certo quais corredores estarão disponíveis quando a fusão finalmente se concretizar.
Grandes nomes como Arnaud De Lie e Biniam Girmay não precisam se preocupar com seus futuros – suas qualidades garantem espaço em qualquer estrutura. Mas para os corredores menos conhecidos e os jovens talentos em desenvolvimento, a realidade é assustadora. Eles não estão na frente da fila de outras equipes interessadas e, desde julho, vivem o que De Gendt descreve como um verdadeiro pesadelo profissional.
O Problema dos Patrocinadores
Um aspecto frequentemente ignorado nas fusões de equipes ciclísticas é o destino dos patrocinadores. De Gendt revelou que nem todos os sponsors podem fazer a transição para a nova estrutura combinada. Muitos deles, especialmente marcas de roupas e fabricantes de bicicletas, ainda desejam manter presença no ciclismo profissional.
Um exemplo concreto mencionado pelo belga: com a Orbea assumindo como fornecedora de bicicletas da nova equipe fundida, a Cube – que equipava uma das equipes originais – fica sem um time no WorldTour. Marcas alemãs de prestígio como esta certamente buscarão outras oportunidades no pelotão internacional.
A Experiência Pessoal de 2013: Quando De Gendt Viveu o Caos
Thomas De Gendt não fala apenas como observador – ele viveu situação similar em 2013, quando duas equipes fecharam as portas e houve outra fusão importante, justamente no momento em que sua equipe Vancansoleil perdia seus patrocinadores.
Apesar de ter contrato garantido, foi liberado no final de setembro. De repente, 90 ciclistas disputavam apenas 20 vagas disponíveis nas equipes remanescentes. A pressão era imensa e o poder de negociação, inexistente. Quando finalmente conseguiu um lugar na Omega Pharma-QuickStep, teve que aceitar um corte salarial de 80%.
“Felizmente, a QuickStep era uma equipe realmente boa, e qualquer corredor ficaria muito feliz em assinar um contrato com eles”, relembra De Gendt. “Sim, tive que correr por muito menos dinheiro, mas pelo menos ainda tinha um emprego e um ano para me mostrar novamente e potencialmente voltar a um salário mais alto nos anos seguintes.”
A assinatura aconteceu pouco antes da Il Lombardia, literalmente na última hora. Muitos de seus colegas não tiveram a mesma sorte e foram forçados a se aposentar prematuramente. De Gendt se considera um dos sortudos.
O Papel dos Agentes em Tempos de Crise
Em cenários de fusão e desemprego em massa, ter um agente torna-se crucial. Porém, De Gendt aponta uma realidade desconfortável: os agentes esportivos também precisam estabelecer prioridades. Com dezenas de corredores sem contrato simultaneamente, eles naturalmente focam nos atletas mais “recompensadores”.
A conta é simples: quando você trabalha com uma comissão de 5% sobre o salário do atleta, existe uma diferença enorme entre ganhar 5% de €50.000 ou 5% de €200.000. Os corredores com salários mais baixos acabam sendo deixados para trás, mesmo que seus agentes façam algum esforço quando surgem oportunidades.
Simultaneamente, as equipes profissionais aproveitam o desespero do mercado para reduzir os valores oferecidos. Sabendo que todos estão desesperados por uma vaga, os salários caem drasticamente. No caso de De Gendt em 2013, a QuickStep poderia ter oferecido ainda menos – o orçamento da equipe já estava fechado para o ano inteiro.
Os Problemas Estruturais da Lotto
De Gendt não se limita a criticar as fusões em geral. Ele identifica problemas específicos na estrutura de gestão da Lotto que complicam ainda mais a situação atual. Após a saída do ex-CEO Stéphane Heulot, a equipe opera com diferentes nomes no nível gerencial, criando uma navegação organizacional complexa.
Durante a era de Jean Lelangue como CEO (antes de Heulot), existia uma regra curiosa: Lelangue podia decidir sozinho sobre a contratação de ciclistas se o salário fosse inferior a €350.000. Valores acima disso precisavam ser aprovados por uma reunião do conselho diretor. Esse processo burocrático custou à equipe vários corredores de qualidade.
O processo era lento demais: proposta enviada ao conselho, discussão, retorno ao corredor, nova conversa com o CEO, volta ao conselho… Quando a decisão final saía, frequentemente o atleta já havia assinado com outra equipe. Na Soudal-QuickStep, por contraste, Patrick Lefevere era o chefe absoluto – se ele queria contratar alguém, a decisão era dele, incluindo valores e termos contratuais.
A Dívida Milionária da Intermarché
Um dos aspectos mais preocupantes revelados por De Gendt é a dívida de €2,5 milhões da Intermarché. O plano original era ambicioso: a Lotto traria €15 milhões e a Intermarché outros €15 milhões, formando um orçamento robusto de €25-30 milhões para 2026.
A realidade, segundo informações que chegaram até De Gendt, é bem diferente. Alguns patrocinadores simplesmente não quiseram fazer a transição para a nova equipe. Outros não puderam porque se sobrepõem a sponsors já existentes na estrutura parceira. O resultado: o orçamento final será significativamente menor do que o inicialmente planejado.
Além disso, a nova equipe precisou pagar as rescisões de aproximadamente 11 corredores com contratos válidos para 2026 que não serão mantidos. Esse custo adicional, somado à perda de alguns bons atletas no processo, cria um cenário financeiro preocupante.
A Falta de Transparência com os Corredores
Durante os primeiros anos de De Gendt na Lotto, sob a liderança de Marc Sergeant e Herman Frison, a estrutura tinha um ambiente familiar. Quando decisões sobre patrocinadores ou corredores entrando e saindo da equipe eram tomadas, os atletas eram mantidos informados. A comunicação era aberta e transparente.
Hoje, segundo o veterano belga, as coisas mudaram drasticamente. Parece haver muito mais segredo e falta de transparência. Embora algum nível de confidencialidade possa ser necessário em negociações delicadas, De Gendt considera problemático que corredores ainda não saibam seus destinos em novembro, quando os rumores começaram em julho.
Os atletas podem fazer perguntas, mas não recebem as informações necessárias em retorno. Essa situação foi confirmada por Adam Hansen, presidente da CPA (Associação de Ciclistas Profissionais), que descreveu os corredores como “reféns” da situação, em uma carta aberta criticando duramente o processo.
O Veredito de De Gendt: “Um Pouco Como um Show de Horrores”
Após analisar todos os aspectos da fusão, Thomas De Gendt não consegue ver o lado positivo. “No geral, não acho que seja algo positivo ter duas equipes em dificuldade se fundindo, porque o resultado parece ser que temos uma equipe fundida ainda em dificuldade, e a outra desaparecendo”, avalia.
Ele não considera isso um problema exclusivo do ciclismo belga, mas sim o resultado de muitas coisas diferentes nos últimos anos que levaram a esta situação. Sua conclusão é contundente: “No fim das contas, quando você olha para tudo isso, é um pouco como um show de horrores.”
A fusão Lotto-Intermarché serve como um lembrete sombrio das fragilidades do atual modelo de financiamento do ciclismo profissional. Enquanto as equipes lutam para sobreviver financeiramente, são os corredores – especialmente os menos conhecidos – que pagam o preço mais alto, vivendo meses de incerteza sobre seus futuros profissionais em um mercado cada vez mais competitivo e saturado.
Perguntas Frequentes sobre a Fusão Lotto-Intermarché
1. Quando a fusão entre Lotto e Intermarché será oficializada?
A fusão está programada para entrar em vigor na temporada 2026. As duas equipes já submeteram o pedido formal à UCI em outubro de 2025, mas ainda aguardam aprovação final. A confirmação definitiva da lista de equipes WorldTour para 2026 deve ser publicada pela UCI no início de dezembro de 2025.
2. Quantos corredores perderão seus empregos com a fusão?
As duas equipes juntas têm 43 corredores sob contrato, mas uma equipe WorldTour pode ter no máximo 30 atletas. Isso significa que pelo menos 13 ciclistas ficarão sem vaga na nova estrutura, embora alguns possam encontrar lugares em outras equipes do pelotão.
3. Biniam Girmay ficará na equipe fundida?
O futuro de Biniam Girmay permanece incerto. O velocista eritreu, principal estrela da Intermarché, tem sido fortemente ligado a uma possível transferência para a equipe XDS-Astana (antiga Israel-Premier Tech) para 2026. Sua decisão pode depender do projeto esportivo apresentado pela nova Lotto-Intermarché.
4. Qual será o orçamento da nova equipe?
Inicialmente, esperava-se um orçamento combinado de €25-30 milhões (€15 milhões de cada equipe). No entanto, segundo informações reveladas por Thomas De Gendt, o valor real será significativamente menor devido a patrocinadores que não fizeram a transição e à dívida de €2,5 milhões da Intermarché que precisa ser quitada.
5. Por que a fusão está demorando tanto tempo?
Vários fatores complicam o processo: a dívida milionária da Intermarché, conflitos entre patrocinadores das duas estruturas, a necessidade de rescindir contratos de corredores que não serão mantidos, e a complexa estrutura de gestão da Lotto que requer aprovação do conselho para decisões importantes. Além disso, questões sobre licenças WorldTour e garantias financeiras precisam ser resolvidas com a UCI.
6. Como funciona o poder de negociação dos corredores em situações de fusão?
Os ciclistas têm pouquíssimo poder de negociação nestes cenários. Aqueles com contratos válidos não podem simplesmente sair para procurar outras equipes – ficam “reféns” até que a nova estrutura decida se quer mantê-los ou não. Como o mercado fica inundado com corredores disponíveis simultaneamente, os salários caem drasticamente e muitos atletas aceitam qualquer oferta apenas para continuar competindo.
7. Quais são os principais corredores garantidos na nova equipe?
Da Lotto, corredores como Arnaud De Lie, Lennert Van Eetvelt, Milan Menten, Jenno Berckmoes e Jarno Widar têm contratos garantidos para 2026. Da Intermarché, além de Girmay (cuja permanência é incerta), nomes como Gerben Thijssen, Louis Barré, Hugo Page e Georg Zimmermann são considerados valiosos para a nova estrutura.
8. O que acontece com os patrocinadores que não podem fazer a transição?
Patrocinadores que equipavam uma das equipes originais mas não podem seguir para a estrutura fundida (como a Cube, que será substituída pela Orbea como fornecedora de bicicletas) geralmente buscam outras equipes para patrocinar. Isso pode criar oportunidades para outras estruturas no WorldTour ou ProTeams que buscam suporte financeiro e de equipamentos.
9. Como a fusão afeta o mercado de transferências do ciclismo?
A fusão cria um efeito dominó devastador no mercado. Com a incerteza sobre quais corredores estarão disponíveis, muitas negociações ficam paralisadas. Outras equipes esperam para ver quem será liberado antes de fechar suas próprias contratações. Isso deixa dezenas de ciclistas em limbo profissional por meses, muitas vezes perdendo janelas de oportunidade em outras estruturas que já completaram seus elencos.
10. Fusões de equipes são comuns no ciclismo profissional?
Fusões acontecem periodicamente no ciclismo profissional, especialmente quando equipes enfrentam dificuldades financeiras. Em 2013, por exemplo, houve duas equipes fechando e uma fusão, criando uma situação caótica com 90 corredores disputando aproximadamente 20 vagas. A tendência tem se repetido nos últimos anos devido aos desafios econômicos enfrentados por muitas estruturas do WorldTour e ProTeams.
11. O que diferencia a estrutura de gestão da Lotto de outras equipes?
A Lotto opera com uma estrutura de decisão colegiada, onde o conselho diretor precisa aprovar contratações de corredores acima de determinado valor salarial. Isso contrasta com equipes como a antiga QuickStep, onde Patrick Lefevere tinha poder de decisão total. O processo mais democrático da Lotto pode trazer mais transparência, mas também torna as decisões mais lentas – um problema crítico em mercados de transferência acelerados.
12. Qual é o papel da CPA (Associação de Ciclistas Profissionais) nesta situação?
A CPA, liderada por Adam Hansen, tem sido vocal em criticar o processo de fusão e defender os direitos dos corredores. Hansen organizou reuniões com a UCI e os gerentes das equipes exigindo uma lista clara de quem ficaria e quem sairia. Ele descreveu a situação como “de partir o coração” e acusou as equipes de não serem honestas com os atletas sobre seus futuros, deixando-os “reféns” do processo até o último momento.
13. Como as equipes de desenvolvimento serão afetadas?
A situação das equipes de desenvolvimento permanece incerta. Ambas as estruturas mantêm programas de formação de jovens talentos (Lotto Development Team e Wanty-Nippo-ReUz), mas ainda não está claro se as duas continuarão existindo separadamente, se serão fundidas em uma única estrutura, ou se uma delas será descontinuada para reduzir custos.
14. Existe risco de a fusão não ser aprovada pela UCI?
Embora a documentação tenha sido submetida dentro do prazo (15 de outubro de 2025), a aprovação da UCI depende de várias garantias financeiras, incluindo a quitação da dívida da Intermarché e provas de que a nova estrutura terá recursos suficientes para operar. A legislação belga que rege contratos de trabalho também adiciona complexidade ao processo. No entanto, analistas consideram mais provável que a fusão seja aprovada do que rejeitada, dado o investimento já feito por ambas as partes.
15. O que Thomas De Gendt aprendeu com sua própria experiência em 2013?
A principal lição de De Gendt foi a importância de ter flexibilidade e humildade em momentos de crise no mercado. Aceitar um corte salarial de 80% foi doloroso, mas permitiu que ele continuasse competindo em uma equipe de alto nível (QuickStep) e eventualmente reconstruísse sua carreira. Ele também aprendeu que o timing é tudo – assinar na última hora (pouco antes de Il Lombardia) foi arriscado, mas pelo menos garantiu emprego quando muitos colegas ficaram sem opções e foram forçados a se aposentar.
Fontes: Cyclingnews, Escape Collective, GoRide.pt

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