Você já se perguntou por que alguns ciclistas conseguem fazer sprints devastadores ou subir aquela rampa curta com muito mais potência que outros? A resposta está na capacidade anaeróbica, um dos pilares fundamentais da performance no ciclismo que, muitas vezes, fica em segundo plano quando falamos de treinamento.
O Que É Capacidade Anaeróbica e Por Que Ela Importa?
A capacidade anaeróbica representa a quantidade total de energia que seu corpo consegue produzir através de vias metabólicas que não dependem diretamente do oxigênio. Em termos práticos para o ciclismo, isso significa a quantidade de potência extra que você consegue gerar além do seu limiar funcional (FTP).
Diferente da potência aeróbica, que você pode manter por longos períodos, a energia anaeróbica é como uma bateria limitada – poderosa, mas que se esgota rapidamente. É ela que permite aquele ataque decisivo, o sprint final ou o fechamento de uma lacuna na corrida.
A Relação Entre Energia Aeróbica e Anaeróbica
Um erro comum é pensar que as vias aeróbicas e anaeróbicas funcionam separadamente. Na verdade, elas trabalham juntas na maioria dos esforços no ciclismo. Mesmo em um teste de FTP de 20 minutos, aproximadamente 5% da sua produção de potência vem de fontes anaeróbicas.
Pense nisso como dois sistemas complementares: enquanto o sistema aeróbico fornece a base constante de energia (sua frequência cardíaca limiar), o sistema anaeróbico oferece aqueles “extras” de potência quando você mais precisa.
O Modelo do Barril: Entendendo Como Funciona
Para visualizar melhor, imagine sua capacidade anaeróbica como um grande barril de água. Na parte superior, há uma mangueira enchendo constantemente – essa é sua potência de FTP, a taxa com que você produz energia aeróbica. Na base, há uma torneira que representa sua produção total de potência.
Quando você pedala no FTP, a água que entra pela mangueira é igual à que sai pela torneira – o barril mantém seu nível. Mas quando você aumenta a potência acima do FTP (abre mais a torneira), o barril começa a esvaziar. Quanto maior o barril (sua capacidade anaeróbica), mais tempo você consegue manter essa potência extra.
Implicações Práticas do Modelo
- Potência Sustentável Máxima: A quantidade de watts que você consegue manter indefinidamente é igual ao seu FTP (a taxa da mangueira)
- Esforços Acima do FTP: Qualquer potência acima do limiar usa uma combinação de energia aeróbica + anaeróbica (mangueira + barril)
- Recuperação: Quando o barril esvazia, um FTP mais alto reabastece sua capacidade anaeróbica mais rapidamente
Capacidade Anaeróbica na Curva de Potência
Sua curva de perfil de potência – aquele gráfico que você vê no Strava ou TrainingPeaks – conta toda a história. Ela mostra a potência máxima que você consegue sustentar por qualquer duração de tempo.
A área entre sua linha de FTP e a curva de potência representa sua capacidade anaeróbica em ação. O interessante é que essa “reserva” tem sempre o mesmo volume total – você pode usá-la em um esforço curto e explosivo (barril alto e estreito) ou distribuí-la em um esforço mais longo próximo ao FTP (barril baixo e largo).
Diferentes Nomenclaturas
Dependendo da plataforma de análise que você usa, a capacidade anaeróbica pode ter nomes diferentes:
- W’ (pronuncia-se “W prime”) no Golden Cheetah
- FRC (Functional Reserve Capacity) no TrainingPeaks WKO
- Capacidade Anaeróbica em outras plataformas
Mas todos se referem ao mesmo conceito: a quantidade total de joules de energia que você pode produzir acima do seu limiar.
Calculando Seu Tempo de Esforço
A capacidade anaeróbica é medida em joules (j ou kj). Como um watt equivale a um joule por segundo, podemos fazer cálculos práticos sobre quanto tempo você consegue sustentar determinada potência.
Exemplo Prático
Imagine um ciclista com:
- FTP de 300w
- Capacidade anaeróbica de 20.000j (20kj)
Quanto tempo ele consegue manter 400w?
- 400w – 300w (FTP) = 100w vindo do “barril” anaeróbico
- 100w = 100 joules por segundo
- 20.000j ÷ 100j/s = 200 segundos
- Resultado: 3 minutos e 20 segundos
Qual potência ele sustenta por 10 minutos?
- 10 minutos = 600 segundos
- 20.000j ÷ 600s = 33,3w do barril
- 300w (FTP) + 33,3w = 333,3w por 10 minutos
Testes Para Determinar Sua Capacidade Anaeróbica
Existem diversos protocolos para medir sua capacidade anaeróbica. Vou apresentar os dois principais:
1. Teste CP3 (Método Rápido e Intenso)
O teste CP3 é brutalmente simples: um esforço máximo de 3 minutos onde você começa com um sprint explosivo e tenta manter a maior potência possível até o final.
A lógica é esvaziar completamente seu “barril” nos primeiros 2 minutos, e então a potência média do último minuto representa aproximadamente seu FTP. Com esses dados, você calcula sua capacidade anaeróbica.
Atenção: Este teste é extremamente exigente e deve ser feito apenas sob supervisão profissional, de preferência em ambiente laboratorial.
2. Método dos Contrarrelógios Múltiplos (Mais Confiável)
Uma abordagem mais precisa e segura envolve realizar vários esforços máximos de diferentes durações ao longo de alguns dias:
- 3 minutos all-out
- 5 minutos all-out
- 8 minutos all-out
- 12 minutos all-out
- 15 minutos all-out
Plotando essas potências em um gráfico, você obtém uma curva. Programas como TrainingPeaks e Golden Cheetah calculam automaticamente tanto seu FTP quanto sua capacidade anaeróbica a partir desses dados.
Como Treinar Para Melhorar Sua Capacidade Anaeróbica
Para desenvolver sua capacidade anaeróbica, você precisa dar ao corpo um estímulo claro: esvazie o tanque repetidamente. Aqui estão dois treinos comprovadamente eficazes:
Treino 1: Sprints em Subida de 30 Segundos
Objetivo: Depletar rapidamente sua reserva anaeróbica através de esforços máximos curtíssimos.
- Aquecimento: 15-20 minutos em ritmo leve a moderado
- Série principal: 5 × 30 segundos all-out em subida
- Recuperação: 5-6 minutos pedalando suave entre cada sprint
- Volta à calma: 10-15 minutos leve
Dica importante: Você deve sentir que está “morrendo” nos últimos 10 segundos de cada sprint. Se parece fácil, você não está indo forte o suficiente!
Treino 2: Intervalos de 3 Minutos (3×3)
Objetivo: Trabalhar na capacidade de gerenciar a energia anaeróbica em esforços ligeiramente mais longos.
- Aquecimento: 20 minutos progressivo
- Série principal: 3 × 3 minutos em máximo esforço controlado
- Recuperação: 6 minutos de pedalada muito leve
- Volta à calma: 15 minutos
O segredo aqui é o ritmo: você precisa se sentir forte até o final dos 3 minutos, chegando completamente esgotado no último segundo. Não comece rápido demais ou “esvaziará o barril” muito cedo.
Zonas de Treinamento e Capacidade Anaeróbica
Na classificação tradicional de zonas de treino, a sexta zona (entre 121% e 150% do FTP) é conhecida especificamente como “zona anaeróbica”. É nessa faixa que você trabalha diretamente o desenvolvimento dessa capacidade.
Mas lembre-se: mesmo em esforços mais longos nas zonas 4 e 5 (limiar e VO2máx), você está usando parcialmente sua reserva anaeróbica. É por isso que melhorar o FTP também ajuda a recuperar mais rapidamente sua capacidade anaeróbica entre esforços.
Aplicações Práticas no Ciclismo
Independente do tipo de ciclista que você seja, ter uma boa capacidade anaeróbica faz diferença em situações reais:
- Sprints finais: Aquele último empurrão para a linha de chegada
- Ataques decisivos: Abrir gap do pelotão em momentos estratégicos
- Subidas curtas e íngremes: Manter potência em rampas de 30 segundos a 3 minutos
- Fechamento de gaps: Potência para alcançar um grupo que escapou
- Acelerações repetidas: Como em circuitos técnicos ou provas de critério
A Importância do Equilíbrio no Treinamento
Muitos ciclistas focam exclusivamente no aumento do FTP, esquecendo que a capacidade anaeróbica também precisa de atenção. Outros treinam apenas sprints e intervalos curtos, negligenciando a base aeróbica.
A verdade é que ambos os sistemas são complementares. Um FTP mais alto significa:
- Menor necessidade de usar a reserva anaeróbica em ritmos moderados
- Recuperação mais rápida da capacidade anaeróbica entre esforços
- Maior potência absoluta em todos os esforços
Por outro lado, uma grande capacidade anaeróbica permite explodir quando necessário, mesmo que seu FTP não seja excepcional.
Monitoramento e Progressão
Para acompanhar sua evolução, use as ferramentas disponíveis em plataformas como TrainingPeaks, Golden Cheetah ou mesmo nos relatórios avançados do Strava. Observe:
- Mudanças na área entre sua curva de potência e linha de FTP
- Aumento nas potências de 30 segundos, 1, 3 e 5 minutos
- Tempo que consegue sustentar potências acima de 120% do FTP
- Velocidade de recuperação entre intervalos intensos
Considerações Finais
A capacidade anaeróbica é frequentemente o diferencial entre um bom ciclista e um ciclista excepcional. Ela permite aquelas explosões de potência que definem corridas, conquista montanhas curtas e garante vitórias em sprints.
Mas lembre-se: como qualquer qualidade física, ela precisa de treinamento específico e progressão gradual. Comece devagar, respeite os períodos de recuperação e seja consistente. Com o tempo, você verá não apenas números maiores no seu medidor de potência, mas também resultados concretos nas suas pedaladas.
O segredo está em entender que você tem duas fontes de energia trabalhando juntas. Desenvolva ambas de forma inteligente, e você terá não apenas resistência para pedalar longas distâncias, mas também a explosão necessária quando a corrida exigir.
Agora é sua vez: que tal testar sua capacidade anaeróbica e começar a incluir treinos específicos na sua planilha? Seu futuro eu agradecer ao ver aquelas watts extras quando você mais precisar delas!

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