Aos 36 anos, o italiano Salvatore Puccio encerra uma carreira de 14 temporadas dedicadas exclusivamente à INEOS Grenadiers. Mais do que anunciar sua aposentadoria, o ciclista siciliano deixa um alerta contundente sobre a evolução preocupante do ciclismo profissional moderno: o esporte se tornou “incrivelmente perigoso e exaustivo”.
Em entrevista exclusiva ao TuttoBici, Puccio revelou detalhes alarmantes sobre as transformações que testemunhou ao longo de sua carreira, desde os tempos da Team Sky até a atual configuração da equipe britânica.
Uma Carreira de Lealdade e Dedicação
Nascido em Menfi, Sicília, Salvatore Puccio ingressou na Team Sky em 2011 e permaneceu fiel à mesma estrutura durante toda sua trajetória profissional. Essa lealdade rara no ciclismo moderno transformou-o em um dos gregários mais valiosos e experientes do pelotão.
“Sempre vesti a mesma camisa porque me sentia confortável neste grupo”, explicou o italiano. “Vi muitos companheiros de equipe chegarem e partirem, assim como mudanças no staff. Não sou o único, mas sou um dos poucos que restam do projeto original.”
Ao longo de 14 anos, Puccio participou de 10 edições do Giro d’Italia e 7 Vueltas a España, contribuindo decisivamente para vitórias de nomes como Chris Froome (Giro 2018), Tao Geoghegan Hart (Giro 2020) e Egan Bernal (Giro 2021). Curiosamente, nunca foi selecionado para o Tour de France, apesar de sua importância dentro da equipe.
O Momento da Despedida
A decisão de se aposentar veio após uma temporada 2024 marcada por dificuldades físicas. Puccio sofreu sua primeira lesão grave da carreira ao fraturar o pulso pouco antes do Tour dos Alpes, afastando-o da competição que mais amava: o Giro d’Italia em solo italiano.
“Após tantos anos, senti a necessidade de dizer: basta”, confessou o veterano. “Durante os treinos recentes, senti até certa melancolia, mas durante as corridas, sentia a fadiga.” A pausa forçada de dois meses para recuperação permitiu uma reflexão profunda sobre seu futuro no esporte.
Sua última corrida oficial foi a Il Lombardia, tradicional monumento que encerra a temporada europeia, realizada em outubro de 2024.
Denúncia: O Pelotão Extremamente Perigoso
As declarações mais impactantes de Puccio dizem respeito às mudanças dramáticas na dinâmica de corrida que testemunhou ao longo de sua carreira. Segundo o italiano, o ciclismo profissional tornou-se progressivamente mais veloz, agressivo e, consequentemente, perigoso.
“Está incrivelmente perigoso e exaustivo“, alertou Puccio. “Quase ninguém freia mais. Se você desacelera por um instante, perde 40 posições, e para voltar é brutal. Se deixar uma pequena diferença, alguém se joga na frente imediatamente.”
O veterano explicou que o problema não está nas relações de marcha das bicicletas modernas, mas sim na mentalidade coletiva do pelotão: “Não é uma questão de engrenagens, mas de mentalidade. Os acidentes que vemos na TV representam apenas 1% do que realmente acontece.”
Puccio destacou que o pelotão moderno está constantemente compactado, criando situações de extrema tensão: “Dentro do grupo, você está constantemente empurrando e sentindo a pressão das pessoas ao redor. O pelotão está realmente muito compacto.”
Do Começo ao Fim: Loucura Permanente
Uma das transformações mais significativas, segundo o italiano, é que a intensidade máxima não se restringe mais aos quilômetros finais. “No passado, você só experimentava essa loucura na linha de chegada, mas agora começa do quilômetro zero”, observou Puccio.
O ciclista relatou uma experiência recente que exemplifica essa mudança: “Recentemente, atingi 84 km/h em uma descida, e fiquei assustado. Infelizmente, temo que isso só piore.”
Essa evolução está diretamente relacionada às mudanças nos métodos de treinamento e preparação física dos ciclistas profissionais modernos.
A Revolução nos Métodos de Treinamento
Puccio ofereceu uma visão privilegiada sobre como os protocolos de preparação física evoluíram drasticamente durante sua carreira. “O ciclismo mudou muito e está cada vez mais exigente”, afirmou. “Para me manter competitivo, no inverno passado eu treinava três vezes por dia.”
Essa rotina extrema incluía: academia pela manhã, treino na bicicleta durante o dia e sessões nos rolos à noite, “vestido para suar”. O veterano questiona a sustentabilidade desse regime: “Por quanto tempo um jovem consegue manter esse ritmo?”
Transformação na Nutrição Esportiva
A nutrição esportiva também passou por uma revolução completa. Puccio descreveu como a alimentação durante treinos e competições mudou radicalmente:
“Houve uma revolução na nutrição”, explicou. “No passado, após uma omelete, você fazia um jejum normal de cinco horas. Agora você começa a treinar com sessões específicas e personalizadas, com bolsos cheios de géis. Você precisa se acostumar a absorver 120 gramas de carboidratos por hora – isso é muito.”
Essa mudança reflete a crescente cientificização do esporte, onde cada aspecto da performance é meticulosamente calculado e otimizado, mas também aumenta a pressão sobre os atletas.
O Legado de Puccio na INEOS Grenadiers
Embora nunca tenha conquistado vitórias individuais em sua carreira profissional, Salvatore Puccio construiu um legado sólido como gregário de elite. Sua contribuição foi fundamental para o sucesso da equipe mais dominante da última década do ciclismo.
O siciliano teve a honra de vestir a lendária Maglia Rosa do Giro d’Italia em 2013, após a Team Sky vencer o contrarrelógio por equipes da segunda etapa. Como estava melhor posicionado na classificação geral entre seus companheiros após a primeira etapa, Puccio liderou a corrida e pedalou com a camisa rosa na terceira etapa – um dos momentos mais especiais de sua carreira.
“Vestir a camisa rosa no meu primeiro Giro d’Italia foi uma surpresa maravilhosa”, relembrou o italiano com evidente emoção.
Ao longo de 14 temporadas, Puccio serviu como capitão de estrada experiente, guiando jovens talentos e protegendo líderes em momentos cruciais das grandes voltas. Sua experiência, lealdade e profissionalismo o tornaram uma peça inestimável da engrenagem da INEOS Grenadiers.
Da Jardinagem ao Carro de Equipe
Ao encerrar sua carreira sobre a bicicleta, Puccio já tem planos bem definidos para o futuro. Durante as últimas temporadas, desenvolveu uma paixão inesperada pela jardinagem.
“Comecei a fazer jardinagem; é incrivelmente relaxante”, revelou o italiano. “Meu sogro me transmitiu essa paixão. Ele sempre cuidou do nosso jardim, mas ultimamente gosto de fazer tudo sozinho – desde girar as plantas para que recebam luz solar de todos os lados e não entortem, até a poda.”
No entanto, a jardinagem permanecerá apenas como hobby. Puccio não está abandonando completamente o ciclismo – pelo contrário, está iniciando uma nova fase profissional dentro do esporte.
Preparação Para Diretor Esportivo
“Matriculei-me no programa de treinamento da UCI para me tornar diretor esportivo“, anunciou Puccio. “Quero permanecer com a equipe e gostaria de subir ao carro de equipe, mesmo que seja para outra equipe.”
O veterano já identificou seus modelos de inspiração para essa nova fase: “Vou me inspirar em Matteo Tosatto, que é cheio de carisma e sabe como motivar, e em Dario Cioni, que é calmo e comedido. Idealmente, gostaria de estar em algum lugar entre os dois.”
Ambos são ex-ciclistas italianos que se tornaram diretores esportivos respeitados – Tosatto trabalha atualmente na Visma-Lease a Bike, enquanto Cioni faz parte da estrutura da INEOS Grenadiers.
Contexto: A Crise de Segurança no Ciclismo Profissional
As preocupações levantadas por Salvatore Puccio ecoam sentimentos expressos por diversos ciclistas, equipes e autoridades do ciclismo nos últimos anos. A segurança no pelotão tornou-se um dos tópicos mais debatidos no esporte.
Diversos fatores contribuem para o aumento da intensidade e dos riscos:
- Avanços tecnológicos: Bicicletas mais leves e aerodinâmicas permitem velocidades cada vez maiores
- Métodos de treinamento: Preparação física mais sofisticada resulta em atletas mais fortes e velozes
- Pressão competitiva: Maior número de equipes e corredores disputando resultados limita oportunidades
- Coberturas midiáticas: Transmissões ao vivo incentivam corridas mais agressivas desde o início
- Estruturas de pontuação: Sistemas de ranking incentivam corridas mais ofensivas
A UCI, órgão regulador do ciclismo mundial, tem trabalhado em diversas iniciativas para melhorar a segurança, incluindo mudanças em regulamentos sobre barreiras de proteção, zonas de segurança nos quilômetros finais e protocolos de penalização para comportamentos perigosos.
Acidentes Recentes Evidenciam o Problema
Nas últimas temporadas, o ciclismo profissional registrou diversos acidentes graves que resultaram em lesões sérias e até mesmo tragédias. Quedas coletivas tornaram-se cada vez mais comuns, especialmente nos quilômetros finais de etapas planas, onde o pelotão compactado disputa posições para o sprint.
A comunidade ciclística continua buscando soluções que equilibrem a emoção e competitividade do esporte com a segurança necessária para proteger a integridade física dos atletas.
Reflexões Sobre Uma Carreira Sem Arrependimentos
Ao ser questionado sobre possíveis arrependimentos, Puccio foi categórico: “Nenhum. Estou feliz com minha carreira.” Essa declaração reflete a paz interior de um atleta que cumpriu seu papel com excelência, mesmo sem o glamour das vitórias individuais.
O siciliano reconhece que sua trajetória foi marcada pela ausência de lesões graves durante quase toda a carreira – um luxo raro no ciclismo profissional. “Nunca tive nenhum problema importante”, afirmou. “Minha primeira lesão real ocorreu este ano, quando quebrei o pulso pouco antes do Tour dos Alpes.”
Embora a fratura tenha impedido sua participação no Giro d’Italia 2024 – frustração significativa para um italiano apaixonado pela corrida nacional – Puccio encara o episódio como parte natural do processo que o levou à decisão de se aposentar.
O Papel Fundamental dos Gregários no Ciclismo
A história de Salvatore Puccio oferece uma oportunidade para destacar a importância dos domestiques (gregários) no ciclismo profissional – atletas cujo trabalho raramente recebe os holofotes, mas é absolutamente essencial para o sucesso das equipes.
Gregários como Puccio desempenham múltiplas funções críticas:
- Controle do pelotão: Ajustam o ritmo para proteger ou desgastar adversários
- Proteção aerodinâmica: Criam abrigo do vento para os líderes economizarem energia
- Busca de suprimentos: Retornam ao carro de equipe para pegar água e alimentos
- Assistência mecânica: Oferecem suas bicicletas em caso de problema mecânico do líder
- Orientação tática: Veteranos como Puccio servem como capitães de estrada
Sem o trabalho incansável de gregários dedicados como Puccio, as vitórias de Chris Froome, Egan Bernal e outros campeões da INEOS Grenadiers simplesmente não seriam possíveis. Eles são os verdadeiros alicerces sobre os quais as glórias são construídas.
INEOS Grenadiers: Uma Dinastia em Transformação
A saída de Salvatore Puccio marca mais um capítulo na evolução da INEOS Grenadiers, equipe que dominou o ciclismo mundial na última década. Desde sua criação como Team Sky em 2010, a equipe britânica conquistou:
- 8 Tours de France (com Bradley Wiggins, Chris Froome, Geraint Thomas e Egan Bernal)
- 2 Giros d’Italia (com Chris Froome e Tao Geoghegan Hart)
- Inúmeras outras vitórias em corridas de uma semana e clássicas
Atualmente, a equipe passa por uma fase de renovação, buscando desenvolver novos talentos enquanto mantém alguns veteranos experientes. A aposentadoria de Puccio, combinada com a possível transição de Geraint Thomas para o final de carreira, sinaliza o fim de uma era.
A equipe agora concentra esperanças em jovens talentos como Tom Pidcock e Carlos Rodríguez para liderar o próximo ciclo de sucesso.
Lições de Uma Carreira Dedicada
A trajetória de Salvatore Puccio oferece várias lições valiosas para aspirantes a ciclistas profissionais e fãs do esporte:
- Lealdade tem valor: Em um esporte onde muitos ciclistas trocam de equipe regularmente, Puccio demonstrou que comprometimento de longo prazo pode ser extremamente gratificante
- Nem todo sucesso é visível: Embora nunca tenha vencido uma corrida, Puccio foi fundamental para dezenas de vitórias da equipe
- Profissionalismo importa: Sua consistência e confiabilidade ao longo de 14 temporadas o tornaram indispensável
- Saber quando parar: Reconhecer o momento certo de encerrar uma carreira é um ato de sabedoria
- Preparar a transição: Puccio já está se preparando para sua próxima fase como diretor esportivo
O Futuro do Ciclismo: Desafios e Oportunidades
As reflexões de Salvatore Puccio sobre a evolução perigosa do ciclismo devem servir como chamado à ação para toda a comunidade ciclística – desde organizadores de corridas até fabricantes de equipamentos, passando por equipes e a própria UCI.
Algumas medidas que vêm sendo discutidas para melhorar a segurança incluem:
- Redução do tamanho das equipes: Pelotões menores podem ser mais gerenciáveis
- Limitação de potência nas bicicletas: Discussões sobre restringir avanços tecnológicos que aumentam excessivamente a velocidade
- Zonas de segurança ampliadas: Quilômetros finais com restrições mais rigorosas
- Penalizações mais severas: Punições mais duras para comportamento perigoso
- Mudanças nos percursos: Eliminação de trechos particularmente perigosos
O desafio é implementar essas medidas sem comprometer a emoção e espetáculo que tornam o ciclismo tão cativante para milhões de fãs ao redor do mundo.
Um Adeus Que É Também Um Alerta
A aposentadoria de Salvatore Puccio marca o fim de uma era para a INEOS Grenadiers e para o ciclismo italiano. Mais do que isso, suas declarações francas sobre os perigos crescentes do esporte moderno representam um testemunho valioso de alguém que vivenciou profundamente as transformações do ciclismo profissional.
O alerta do veterano italiano – “só restam poucos que ainda freiam no pelotão” – deve ressoar além dos limites do esporte, alcançando organizadores, reguladores e todos aqueles que têm poder para influenciar o futuro do ciclismo.
Enquanto Puccio se prepara para sua nova jornada como diretor esportivo, levando consigo 14 anos de experiência e sabedoria, o ciclismo profissional enfrenta o desafio de equilibrar progresso e segurança, velocidade e prudência, emoção e responsabilidade.
A comunidade ciclística mundial deve agradecer a Salvatore Puccio não apenas por suas contribuições em corrida, mas também por ter a coragem de falar abertamente sobre questões críticas que afetam o futuro do esporte que todos amamos.
Boa sorte na nova fase, Salvatore. O pelotão sentirá sua falta, mas os carros de equipe ganharão um diretor esportivo experiente, leal e consciente dos desafios que os ciclistas enfrentam nas estradas europeias.

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